NA MOSCA #9 – a lanterna mágica de “No caminho de Swann” (Marcel Proust, 1913)

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A dica dessa semana é o acervo de lanternas mágicas da Cinemateca Francesa, que possui cerca de 17 mil peças de diversos países e inúmeros temas. Parte desse repertório está disponibilizada em um site, que está dividido em quatro coleções:

Life Models – placas feitas a partir de fotografias e pintadas à mão, que surgiram em 1870 na Inglaterra;
Royal Polytechnique – uma instituição londrina do século XIX conhecida pela inigualável qualidade de suas placas feitas à mão;
Lapierre – placas de Auguste Lapierre, que fizeram muito sucesso na França do século XIX;
Plaques animées – que são placas de movimento mecânico dos séculos XVIII e XIX.

Toda a coleção vale a pena ser explorada, é claro, mas a minha dica está na seção Lapierre: são as placas descritas por Marcel Proust no primeiro volume de “Em busca do tempo perdido“, No caminho de Swann (1913). Alguns poderão se lembrar que logo no começo do livro encontramos a descrição de uma projeção de lanterna mágica dentro do quarto do protagonista. Aí vai um trecho da cena:

Todos os dias em Combray, desde o final da tarde, muito antes do momento em que deveria ir para a cama e ficar, sem dormir, longe de minha mãe e de minha avó, o quarto de dormir tornava-se o ponto fixo e doloroso de minhas preocupações. Bem se haviam lembrado, para distrair-me nas noites em que me achavam com um ar muito melancólico, de presentear-me com uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada, enquanto não chegava a hora de jantar; a lanterna, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da idade gótica, sobrepunha, à opacidade das paredes, impalpáveis criações, sobrenaturais aparições multicores, onde se pintavam legendas como em um vitral vacilante e efêmero. Mas com isso ainda mais crescia minha tristeza, pois a simples mudança de iluminação destruía o hábito que eu tinha de meu quarto, e graças ao qual este se me tornava suportável, descontado o suplício de ir deitar-me. Agora já não o reconhecia e sentia-me inquieto como em um quarto de hotel ou de chalé, aonde tivesse chegado pela primeira vez, ao desembarcar de um trem.

Depois disso, o narrador descreve um pouco a história de Geneviève de Brabant. Segundo a Cinemateca Francesa, as placas descritas por ele são estas:

1-2

Geneviève, filha do Duque de Brabant, se casa com o senhor Siffroy.

3-4

Mas, logo depois do casamento, Siffroy precisa ir para a guerra.

5-6

Antes de partir, ele confia seu reino ao mordomo Golo. Este tenta em vão seduzir Geneviève e, em seguida, por conta de sua recusa, ele decide jogar a moça na prisão com um filho recém-nascido, acusando-o de ser o resultado de um adultério.

7-8

Siffroy ouve a notícia e, enfurecido, ordena a morte de Geneviève e seu filho.

9-10

Mas Golo não consegue matá-los e abandona Geneviève e o bebê na floresta. Geneviève se refugia, então, em uma caverna e alimenta seu filho com o leite de uma corça. Um dia, ao sair para caçar, Siffroy persegue a mesma corça e encontra a caverna onde está Geneviève.

11-12

Siffroy entende seu erro e executa Golo. Geneviève e seu filho voltam a viver no palácio, onde levam uma vida pacífica.

Depois o narrador de “No caminho de Swann” continua:

Certamente achava eu um especial encanto naquelas brilhantes projeções que pareciam emanar de um passado merovíngio e passeavam em redor de mim tão antigos reflexos de história. Mas não posso descrever que mal-estar me causava aquela intrusão do mistério e da beleza em um quarto que eu acabara de encher com minha personalidade a ponto de não dar mais atenção a ele do que a meu próprio eu. Cessando, assim, a influência anestésica do hábito, punha-me então a pensar e a sentir: coisas tão tristes. Aquela maçaneta da porta de meu quarto, que se diferenciava para mim de todas as maçanetas de porta do mundo, pelo fato de que parecia abrir-se por si, sem que eu tivesse necessidade de torcê-la, de tal modo se me tornara inconsciente seu manejo, ei-la que servia agora de corpo astral a Golo. E assim que tocavam a sineta para o jantar, apressava-me em correr ao refeitório, onde todas as noites esparzia sua luz a grande lâmpada de teto, que nada sabia de Golo nem de Barba Azul, e que conhecia meus pais e o assado de caçarola; e caía nos braços de mamãe, a quem as desgraças de Geneviève de Brabant me tornavam mais querida, ao passo que os crimes de Golo me faziam examinar com mais escrúpulo minha própria consciência.

Ainda segundo o site da Cinemateca Francesa, a lanterna que aparece na cena seria do tipo Lampascope, que era uma lanterna mágica para projeção caseira acoplada a uma lâmpada de querosene.

lampascope

O site da Cinemateca Francesa ainda tem textos sobre história da lanterna mágica e vários links relacionados. Vale a pena clicar!

As descrições das placas foram traduzidas por mim a partir dos textos do site da Cinemateca Francesa. Os trechos do romance de Proust foram retirados da tradução de Mario Quintana.

Também postei sobre lanternas mágicas aqui.
Todas as dicas da semana podem ser vistas na série na mosca.

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