Diário de Pesquisa #1 – como eu escrevi meu projeto

banner pesquisa Vou começar uma nova série de posts aqui no blog, onde pretendo unir textos mais teóricos e mais pessoais. Diário de Pesquisa é o espaço que eu criei para falar sobre minhas dificuldades e descobertas ao longo da pesquisa de Iniciação Científica que estou começando agora. Vou atualizar essa tag sempre que encontrar alguma informação interessante, ler um livro ou artigo muito bom, ter alguma ideia nova… Vou falar também sobre a organização da pesquisa, cronograma, bibliografia, metodologia… Enfim, sobre tudo o que eu não sei como funciona, mas terei que aprender fazendo! Acho que isso vai me ajudar bastante a organizar os pensamentos ao longo do processo e espero poder ajudar outras pessoas que também estão começando no mundo acadêmico.

Nesse primeiro post introdutório vou falar um pouco sobre a escrita do projeto, que foi um processo longuíssimo para mim. Quando eu comecei a escrever de fato, até que foi rápido. Escrevi toda a base do texto em mais ou menos um mês (depois vieram as releituras e correções de amigos e, com isso, inúmeras pequenas alterações). Mas para conseguir definir o objeto de pesquisa demorou muitos meses. Antes de contar como foi a minha experiência, queria dizer algumas coisas simples que me ajudaram muito:

  • conversar com os amigos (tentar explicar o que eu estava estudando ajudou a organizar as ideias e começar a entender o que eu queria pesquisar de fato)
  • manter um diário (no meu caso é um caderno, que anda sempre comigo, onde eu escrevo novas ideias, perguntas, citações, títulos de textos que eu preciso ler etc.)
  • escrever muito (mesmo sem me sentir totalmente pronta para escrever, eu comecei a elaborar algumas ideias em forma de texto, o que foi essencial para formar a base do projeto final)
  • pensar no título do projeto (pode parecer besteira, mas o título é a forma mais resumida e mais clara para definir o projeto. pensar nele ajuda a entender qual o foco da pesquisa)
  • mostrar o texto para os amigos (principalmente aqueles que já passaram por isso. sou muito grata a eles pelas leituras atenciosas e sugestões preciosas!)
diario_de_bordo

Meu caderno de pesquisa e a sempre companheira “Encyclopedia of early cinema”.

Eu sempre quis formalizar meus estudos nessa área, que começaram em 2005, mas não sabia qual seria o meu foco. Quando entrei em Letras, na Universidade de São Paulo (USP), a faculdade que curso atualmente, pensei que era a hora de me organizar e escrever o tal projeto de Iniciação Científica. Minha maior dificuldade foi a definição do objeto. Eu me interessava muito por recepção cinematográfica, mas é um campo pouco explorado pela historiografia do cinema e, por isso, eu acabava pensando em temas muito genéricos… E isso é um problema, pois o projeto deve ser claro e bem definido. Não adianta querer abraçar o mundo e nem tratar de questões muito abstratas, ainda mais na Iniciação Científica. É preciso escolher algum critério para a demarcação do seu objeto, que pode ser um período, um lugar, um autor, um conceito, um filme etc… Eu não conseguia fazer isso e pensei em algumas ideias diferentes – a mais duradoura delas foi querer estudar os mitos de origem do cinema ligados ao espectador. Eu queria entender como foram construídas essas ideias (por exemplo: o público que supostamente saiu correndo nas primeiras projeções dos irmãos Lumière ou a ideia do “espectador ingênuo”) e buscar relatos de época e outros documentos que “provassem” que essas histórias eram apenas mitos que se reproduziram ao longo do século XX. Mas eu percebi que seria muito difícil transformar essa ideia em um objeto e que, no final das contas, eu estudaria as histórias do cinema que reproduziram esses mitos em vez de estudar o período que mais me interessa, o do primeiro cinema.

Então eu fui percebendo que uma coisa é aquilo que você tem no horizonte, que no meu caso é essa ideia de desmistificação do suposto “primitivismo” do primeiro cinema, que apesar de ser combatido desde o final dos anos 1970, ainda é muito reproduzido; outra coisa é o objeto através do qual você vai se aproximar cada vez mais do seu horizonte.

Na metade do ano passado eu consegui avançar nesse sentido: decidi que queria estudar os Hale’s Tours, que eram salas de cinema decoradas para parecer vagões de trem. Um ator fazia o papel do condutor da viagem e, através de uma janela, os espectadores-passageiros assistiam a um programa de variedades, que podia incluir filmes do tipo phantom ride (sobre os quais falei aqui), “vistas estrangeiras” e ficções como “O grande roubo do trem” (Edwin S. Porter, 1903). O objetivo era fazer o espectador sentir-se como se estivesse em uma viagem. Para construir esse ambiente, os filmes eram acompanhados pelo balanço do carro, efeitos sonoros e ventiladores que simulavam o vento. Ou seja, era uma atração cujo elemento central era o corpo do espectador. Essas salas surgiram em 1905 nos Estados Unidos e temos notícia de algumas versões brasileiras nos anos de 1907 e 1908.

Hales_Tours_Postcard_London

Cartão postal londrino dos Hale’s Tours. Dá para perceber claramente o tipo de distinção social que os Hale’s Tours vendiam…

Foi muito importante encontrar um fenômeno que parece ser capaz de unir vários dos meus interesses: recepção cinematográfica, relação entre o cinema e a estrada de ferro, programação de variedades, cinema e viagem, parques de diversões, exposições internacionais… Enfim, os Hale’s Tours estão ligados a vários temas que me chamavam a atenção há anos… E foi justamente em uma viagem que eu entendi qual seria o meu foco. Quando, em outubro de 2013, eu estava em Pordenone, na Giornate del Cinema Muto, encontrei um dos pesquisadores que eu mais admiro, Charles Musser. Seu texto “The travel genre in 1903-1904: moving towards fictional narrative” (publicado no livro Early cinema: space, frame, narrative, editado por Thomas Elsaesser) era a minha bíblia na época. Conversei com ele sobre minhas ideias, ainda muito imaturas, e quando eu disse que existia notícia de salas similares no Brasil, ele arregalou os olhos. Ele ficou muito interessado e disse que seria muito importante alguém estudar isso e divulgar a “notícia”. Voltando para casa, não tive dúvidas: meu foco seria esse, as salas similares aos Hale’s Tours que tivemos aqui no país e como elas participaram das transformações ligadas à “espetacularização da vida urbana” (palavras de José Inácio de Melo Souza, em Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema). No próximo post dessa série, que dedicarei ao conteúdo do projeto, falarei mais sobre tudo isso.

Estou fazendo minha Iniciação Científica pela Escola de Comunicações e Artes da USP, a ECA. Essa é uma informação importante: pelo menos na USP – não sei como é em outras Universidades -, os alunos têm a oportunidade de fazer pesquisas em qualquer faculdade ou instituto. Muita gente não sabe disso. Meu orientador é o Eduardo Morettin, que é formado pela História e foi orientado na pós-graduação pelo Ismail Xavier. O Professor Morettin é muito atencioso e generoso. Estou no começo da pesquisa, mas já estou percebendo que faz muita diferença ter um orientador que pode disponibilizar algum tempo para você. Acho que na hora de escolher um professor para pedir orientação, esse deveria ser o critério mais importante, mesmo que o/a professor(a) não seja diretamente ligado/a a seu foco de pesquisa. Mas eu dei sorte porque ele é o professor da ECA mais próximo do meu tema: ele estuda cinema e história, cinema silencioso, exposições internacionais e outros temas desse campo.

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E essa sou eu, orgulhosa com meu projeto!

Ah, só mais uma coisa que eu queria falar: eu passei muito tempo acreditando que eu ainda não sabia o suficiente, que eu não tinha lido tudo o que deveria ler… Isso foi atrasando a elaboração do meu projeto porque, a cada texto que eu lia, eu acrescentava vários outros na lista de leitura. Foi muito difícil medir qual era a hora certa de parar um pouco de ler e começar a escrever o projeto de fato. Hoje eu vejo que eu poderia ter escrito tudo bem antes, talvez um ano antes. Por isso, se eu posso recomendar uma coisa para meus poucos e queridos leitores, é: comece logo a escrever, mesmo que não esteja satisfeito com o resultado. Pode parecer óbvio, mas às vezes é preciso lembrar que é só escrevendo que se escreve alguma coisa! ;)

Como eu disse, no próximo post da série vou falar sobre o conteúdo do meu projeto, qual o meu objeto de pesquisa, meu foco, objetivos etc. Para ler todos os posts do Diário de Pesquisa, é só clicar aqui.

Esse post foi dedicado ao meu amigo querido André Bogaz. :)

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Uma resposta

  1. Nina, adorei ler esse post. Sério. É curioso, porque alguns dos problemas sobre os quais você comenta continuam me atormentando ainda hoje. Escrever, dar forma e reformular as questões. Adorei. Quero mais textos!

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  2. Acho que esse post relata um pouco da angústia produtiva de todo pesquisador de humanidades que realmente preza seu objeto. Afinal, quando o interesse é genuíno, é preciso que o método seja, em grande medida, ditado pelo próprio objeto, e não imposto de fora, como uma ferramenta. Quando há uma troca verdadeira entre o pesquisador e seu objeto, o instrumental teórico de pesquisa é constantemente reelaborado no tête-à-tête com os problemas que a coisa nos impõe. Em contrapartida, cada pesquisador tem sua própria bagagem e seu ponto de vista (político, estético, filosófico, histórico, social), ele não é uma “tabula rasa”. Por um lado, ele não pode impor esse ponto de vista ao objeto, pois isso seria distorcê-lo; pelo outro, sua atração, motor do interesse, tem origem justamente numa afinidade enigmática entre o objeto e o ponto-de-vista, e ambos estão em risco nessa interação. Por isso, penso que se trata de uma angústia, ou seja, de um desejo cuja realização se projeta infinitamente para um futuro (dentro de um túnel cada vez mais estreito), mas produtiva, porque o que a gente escreve no fundo é o relato dessa busca, uma espécie de diário, como você disse.
    Você, como eu, tem um objeto muito específico, Nils (talvez até mais específico). Portanto, o “teor coisal” do seu estudo tende a se avolumar. Afinal, é preciso fazer um longo comentário que situe o leitor no contexto do seu objeto, provê-lo das informações necessárias etc. A grande dificuldade, a meu ver, é fazer isso de modo a não sufocar o “teor de verdade” do seu objeto, ou seja, o modo como ele ilumina sua própria época e as contradições ali presentes e que até hoje continuam a se desdobrar.
    Enfim, é assim que enxergo a totalidade do processo. Quanto à questão da escrita, concordo totalmente. Acho que o texto tem uma certa personalidade própria, que é propenso a rebeldias: a gente sempre tenta domar o bicho para que não perca o rumo, mas não é mole, pelo menos pra mim.
    Parabéns pela postagem, Nils, gostei muito. :)

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